Marginalização sob promessas de sustentabilidade – Gabriela de Souza

Ilha do Combu em imagem de satélite

A análise de notícias recentes sobre a Ilha do Combu, um dos cartões-postais da região e palco de eventos pré-COP, revela uma dissonância preocupante entre a imagem de sustentabilidade projetada para o mundo e a realidade de abandono e injustiça socioambiental vivida por suas populações tradicionais. O discurso oficial de sustentabilidade, embora carregado de promessas de progresso, muitas vezes mascara dinâmicas de exploração dos recursos naturais e de marginalização das populações periféricas

A visita dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron à Ilha do Combu em março de 2024, registrada em meio à exuberância natural, serviu para divulgar a riqueza amazônica e o potencial da bioeconomia local, como a produção de chocolate artesanal de Dona Nena. No entanto, como reportado pelo Instituto Socioambiental, essa imagem cuidadosamente construída ocultou problemas estruturais graves que afligem as 480 famílias residentes: a ausência crônica de sistemas de água potável e tratamento de esgoto. Moradores dependem da compra de água mineral ou, na falta de recursos, utilizam a água do rio Guamá, imprópria para consumo. Iniciativas individuais notáveis, como o tanque de evapotranspiração de Dona Nena ou os biodigestores do restaurante Saldosa Maloca, são soluções pontuais que evidenciam a omissão do poder público em garantir direitos básicos.

Na prática a realização de obras preparatórias à COP 30 tem aprofundado processos de racismo ambiental e marginalização das periferias. Um exemplo emblemático é o despejo de dejetos do bairro da Doca na comunidade da Vila da Barca, revelando um padrão de gestão urbana excludente. A situação é agravada por um turismo crescente e desordenado, que traz consigo poluição sonora, hídrica e acúmulo de lixo, impactando o frágil ecossistema local e a qualidade de vida dos moradores, como alertado na mesma reportagem.  A fala de Dona Nena é emblemática dessa contradição: “Quero que façam as coisas para a vida da gente, não para a COP-30. Não adianta fazer coisas só para gringo ver. Depois eles vão embora e o que fica pra gente?”.

A Agência Brasil informa que, embora a população amazônica em geral espere melhorias em saneamento básico como legado do evento, os investimentos anunciados, como a macrodrenagem de canais, concentram-se na área mais elitizada e central de Belém. As ilhas, que compõem 65% do território da capital, incluindo o Combu, não foram contempladas diretamente por essas obras. A matéria reitera a dependência dos moradores de sistemas como fossas sépticas que não comportam a demanda ampliada pelo turismo, e a ausência de um plano de manejo para a Área de Proteção Ambiental da Ilha do Combu.

O cenário descrito configura um quadro clássico de injustiça socioambiental, onde a responsabilidade da degradação e da falta de infraestrutura recaem de forma desproporcional sobre populações vulnerabilizadas, enquanto a gratificação do feito (investimentos, visibilidade) são direcionados para áreas e setores específicos, muitas vezes ligados à imagem que se deseja projetar para o exterior. Existe uma grande divergência entre os objetivos declarados e as ações efetivas, frequentemente capturadas por interesses políticos e econômicos que reforçam desigualdades.

A situação questiona fundamentalmente o discurso de desenvolvimento sustentável associado à COP 30. Como falar em sustentabilidade e soluções climáticas em um território onde o acesso à água potável e ao saneamento básico – elementos essenciais à dignidade humana e à saúde ambiental – é negado às pessoas? Ocorre uma instrumentalização da Amazônia e de suas populações, transformadas em cenário para discussões globais enquanto suas demandas concretas são secundarizadas.

A falta de água e saneamento, revela um modelo de desenvolvimento insustentável em sua essência.  Portanto, é urgente a construção de políticas públicas participativas que incluam efetivamente as comunidades ribeirinhas nos processos de tomada de decisão. A elaboração de um plano de manejo que respeite os saberes locais e promova melhorias no transporte, saúde, educação e infraestrutura é essencial para garantir justiça ambiental.

Gabriela Eduarda Lima Marques de Souza é socióloga (UFPA)

2 comentários em “Marginalização sob promessas de sustentabilidade – Gabriela de Souza”

  1. André Farias

    Parabéns pelo texto. Trouxe à tona mais um caso de desigualdade ambiental, agora sobre a população ribeirinha da Ilha do Combu. Além disso, escancara a contradição entre discurso e práticas presentes agora no megaevento da COP 30.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *